而硝酸鹽藥物是降壓藥的一種,非常常見。但是,不是說高血壓患者就一定不能吃犀利士,如果是服用ACEI或ARB類或者是鈣離子通道拮抗劑或β受體阻滯劑等藥物時。

Nelly Gutmacher

2015

Impressão em papel vegetal / interferências com pastel e grafite

Curador Marcus Lontra

A PAISAGEM INTIMA

“(…)
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Mulher é desdobrável. Eu sou.”
Adélia Prado, “Com licença poética” In “bagagem”

 

O que vemos do mundo e o que vemos de nós fundem-se num único corpo que a arte traduz, transforma, transfigura. Descobrir a essência das coisas, empreender o caminho do berço esplendido, do núcleo, do óvulo, do encantamento que transforma a paisagem das coisas que habitam na caverna, essa é a razão, esse é o sentido,  esse é o rumo da caravela. Estamos em pleno mar, estamos em plena tormenta das ondas e nas calmarias, estamos em seu corpo, nos seus ciclos, nas tensões da terra, nas luas e nas marés, no sangue, no afeto. Diante do mundo vivido, experimentado e transformado por Nelly Gutmacher seremos sempre hospedeiros e visitantes. Como hospedeiro, reconhecemos nos trabalhos da artista a sua própria essência feminina, a sua capacidade de entender o mundo como extensão daquilo que habita em nós mesmos. Como visitante, nos encantamos com a diferença, com aquilo que se esconde para se revelar, que dá sentido ao interno, ao processo, ao dentro. De que adianta falar sobre coisas que não saem das entranhas do nosso próprio corpo? Para que olhar e se encantar com coisas sem entendê-las como fragmento de um tempo de gestação? “Quem dera, ser o verão o apogeu da primavera”.¹ .Em Nelly Gutmacher – fada e feiticeira – o feminino rege toda a sua alquimia. Impossível dissociar a questão do gênero diante dessas imagens cheias de mistério e ambivalência que a artista compõe em várias técnicas e suportes, usando o corpo e a memória como instrumentos na elaboração de um discurso poético regido pela intercessão entre o tempo e o espaço. Desde os anos 80 o corpo é, para a artista a matéria essencial de sua pesquisa estética. Sobre ele Nelly transforma, cria alegorias e produz ornatos, recobre de véus de sedas e lírios, povoa os desertos com areias coloridas, segue sua sina, suas catedrais, sinagogas e mesquitas, sorve o liquido das flores e por vezes deixa escorrer em silêncio o fel da amargura. Em silêncio Nelly tece há décadas a túnica da beleza e da verdade. Num país onde as mulheres artistas são as principais “experimentadoras”, ela carrega a tradição e porta a sua bandeira. Há muito aqui, da metodologia dos materiais de Amélia Toledo, da espacialidade gráfica de Mira Schendel, da ousadia poética de Lygya Pape e sempre a presença acolhedora de sua amiga e companheira de experimentos, Celeida Tostes. A reunião dos trabalhos recentes da artista num único espaço permite o encontro e o encanto com uma obra densa, sensível, resultado de um trabalho permanente de uma artista que sabe com exatidão medir, equilibrar e dar sentido ao silêncio e a turbulência das coisas da vida reconstruídas pela poesia e pela arte.

 

Marcus Lontra Costa
Rio de Janeiro, Abril de 2015

 

¹Super Homem, A Canção – Gilberto Gil

2000

2000

Crítica de arte Ivana Bentes

O mutante, o plástico, o moldável também estão presentes em Ecologia do Ser, de Nelly Gutmacher, que vai do mais indeterminado e primário (o barro, a terra) até chegar à beleza, rigor e densidade do bronze. Seus seres, negros e dourados, delicados e poderosos, são deusas e figuras hermafroditas, quase-sereias, quase-pássaros, combinações do masculino/feminino que exibem sua sexualidade cambiante. As peças se apresentam como amuleto e “fetiches”, objetos e seres que capturam o desejo e têm força mágica. Figuras ancestrais, polimorfas, míticas e humanas. Nelly trabalha com a transmutação da matéria em formas raras e híbridas, numa exteriorização do mais inconsciente e ancestral em refinadas formas.

 

O que surpreende no trabalho das três artistas é essa síntese de opostos: íntimo e público, cotidiano e transcendental, brutal e fugidio, transmutação da matéria prima em formas singulares que remete o espectador para uma experiência radical: a da origem da própria obra de arte, artesania visceral e impura tornada mestria pelo olho, pela mão, pelo corpo. (BENTES, março de 2000)

 

1990

2000

Curador Marcio Rolo
Nelly Gutmacher – Completa a trilogia “Estudos para um Eterno Retorno” (as duas instalações anteriores foram apresentadas na mesma Galeria) como a intalação “A Serpente de Ouro”.   O trabalho compõe-se de 16 fragmentos cerâmicos remetidos ao arqueológico, que serão dispostos numa parede previamente trabalhada.   O trabalho dá prosseguimento à reflexão plástica que a artista desenvolve em torno dos resíduos acumulados pelas várias culturas em seus procedimentos ritualísticos.   Depois de propor uma reflexão em torno do simbolismo primitivo da luz na instalação “O Sol e a Lua” em 1988 e do símbolo como inscrição plástica na instalação “Os Filhos do Fogo” em 1989, a artista procura a origem do mito do bem e do mal na instalação ora apresentada nesta Galeria.   Segundo as crenças dos Egípcios, o navio do deus-sol, Re, fazia uma viagem por cima dos céus durante o dia e por baixo dos céus durante a noite. Ora, durante a viagem noturna, tinha de enfrentar o perigo da destruição que vinha de um poderoso inimigo: Apófisis, uma terrível serpente. Por esse motivo, executavam-se com frequência, nos templos, rituais para esconjurar tal perigo. (Rolo, 1990)

1989

2000

Curador Marcio Rolo: A Poética do fogo e seu fonemas
Estas pedras estão ordenadas segundo as exigências do silêncio.   Imagens estáticas de uma operação de retorno sobre si mesmas, pequenos registros que perfilam uma caligrafia do afeto, estes filhos do fogo transmutam-se sempre em novas possibilidades, tecendo uma longa rede de vazios (este vazio que requisita) e significações.   Nelly caminha sobre as coisas não ditas. Seu olhar tateia, perscruta, tenta, organiza. Investe um objeto de valor, articula-o em segmentos distintos. O trabalho realiza-se por acumulações e ocupações.   Como num jogo de xadrez, onde as peças são potencializadas pela relação que cada uma mantém com o todo – e só assim adquirem significado – estas configurações no espaço são pontuações de uma trajetória e indica-nos a vontade da ordem, o impenetrável mito da fecundidade e danação, as memórias do fogo. Este dá unidade e promove passagens no conjunto da obra. Atinge a plenitude de um signo quando o trabalho expande-se em direção ao seu próprio fazer.   Neste jogo sem meio-termos, o corpo, entendido como o espaço privilegiado da metáfora, vai cedendo lugar gradativamente à uma geografia de si mesmo. À sua ausência. Da terra emergem resíduos, blocos condensados de desejos que se interrogam e mapeiam percursos diversos.   As pedras estão ali, circunscrevendo espaços onde os espaços da linguagem não alcançam. Resistem à decodificação, à sua dissolução em fonemas (Nelly fala-nos das coisas não ditas).

1989

2000  

Crítico de arte Walmir Ayala: Os filhos do fogo
Os filhos do fogo de hoje remetem a um casamento realizado há um ano atrás, do sol com a lua, no mesmo espaço da galeria Cândido Mendes, Rua Joana Angélica 63, em duas instalações criadas por Nelly Gutmacher. Nelly tem se concentrado, há bastante tempo, em atuar sobre as argilas, o barro e o fogo, interpretando sua essência genesíaca, o universo mítico das relações do homem com a terra, a vida e o mistério da morte. A exposição a inaugurar-se amanhã, às 21 horas, consta de 60 pedras com inscrições enigmáticas. São peças de cimento e terra, obedecendo a uma iluminação que Nelly pretende refletir num clima de suspense, definido como “Sensação de se estar entrando na garganta do diabo”.   As instalações de Nelly Gutmacher foram sempre ritualísticas. Sua memória atávica absorve os primeiros contatos do ser vivente com a terra, principalmente com o barro e de onde veio, e cuja auscultação e sacralização ficam sendo como uma reinvenção da origem de suas próprias emoções. Neste fascínio da origem, Nelly nos propõe um reencontro com a visão primitiva do universo, onde os símbolos eram mínimos e primários, e o silêncio da contemplação uma mistura de terror e prazer.   As pedras desta exposição são formas brutas – o contrário de embrutecidas – ou seja, nascidas de um conhecimento essencial das estruturas da natureza. São detalhes de um jardim vulcânico, signos de uma mensagem cósmica, antiquíssima e anterior, irradiada do silêncio e do desígnio. Nelly Gutmacher vai percorrendo sua história através de instalações. Adverte que este processo nela é tão antigo que nem teria sido rotulado ainda desta forma. Foi desde sempre a busca do ambiental, do circunscrito ao código, não importando uma leitura consequente, mas uma provocação à intimidade com o mistério.   Recomendamos especialmente esta participação que Nelly Gutmacher nos faculta. Como diria Marcio Rolo, na apresentação: “Nelly caminha sobre as coisas não ditas”. (AYALA, 1989)    

1988

2000

Crítica de arte Ligia Canongia: Ritualismo quase religioso

O Centro Cultural Cândido Mendes de Ipanema está expondo, até o próximo dia 17, uma instalação da artista Nelly Gutmacher, realizada com uma tonelada de carvão mineral, fogo e luz. O carvão disposto em forma circular, como mandala, a chama permanentemente acesa e o jogo de luz e sombra no espaço da instalação suscitam uma imagem ritualística, um tanto primitiva, quase religiosa. “Sua estratégia e intenção são semelhantes ao do Homem de Lascaux que, estabelecendo uma relação biunívoca, mágica entre objeto e imagem, configurava a existência de um ser único, indivisível, suscetível de ser apreendido e por isso mesmo dominado.” – diz Márcio Rolo na apresentação da mostra.

 

Já em 1982, com um trabalho e co-autoria de Luiz Áquila, Nelly Gutmacher realizara outra instalação, onde a ideia de unir pintura e escultura levara os dois artistas a trabalharem com ex-votos e velas coloridas. Ao manter as velas acesas, a ação do fogo fazia derreter a parafina, cirando uma massa líquida de diversas cores escorrendo ou vazando para além do perímetro da instalação.

 

Este trabalho já antecipava, de certa maneira, ainda que de forma bem mais descritiva, a ideia de rito, de magia, extrapolando os limites entre profano e religioso: a arte sendo ali entrevista inclusive com uma função profanadora. O percurso da obra de Nelly justifica facilmente a chegada até a instalação atual. Misto de body-art, conceitualismo e até mesmo surrealismo, o trabalho da artista sempre esteve embebido de um certo referencial autobiográfico, onde aprecia oscilar entre poesia e punição, o indivíduo e o Cosmos, a ação contínua, ritualística e o corte, o dilaceramento.

 

Ao mesmo tempo em que ela evocava um ritual de Iniciação ou de Revelação; algo mágico, fugidio e cósmico; o fato de referendar a matéria diretamente no real, na concretude física do seu corpo, no terra a terra, parecia fazer a coisa mágica adquirir uma espessura psicológica, mais do mundo inconsciente do que do esotérico ou algo assim. De qualquer forma, a trajetória de Nelly trazia a marca indelével de seu corpo, de sua vida, de sua percepção feminina e conflituada e, sobretudo, de alguém que queria expressar um forte dualismo entre a realidade e o sonho, o certo e o imponderável. Nas colagens fotográficas do início de sua carreira havia um tom surrealista absolutamente evidente que, pouco a pouco, foi se arrefecendo em função dos conceitos que já amadurecera. Os fragmentos de corpos em cerâmica, mutilados ou sacrificados, foram o passo seguinte de seu trabalho, beirando a Bela e o Horror. O tecido psicológico do trabalho era de tal forma carregado que Nelly chegou a ter toda uma exposição destruída no Parque Lage por um psicótico que simplesmente não suportou o significado simbólico daquela mutilação. Ainda literários e ilustrativos, os fragmentos de corpos apenas devam sequência à autobiografia que se iniciara nas colagens surrealistas mas ainda aprisionavam Nelly ao plano do discurso, do teatro, do monólogo, da cena e da história.

 

Ainda que tratando do mesmo universo simbólico que acompanha o seu caminho desde a última década, somente agora Nelly Gutmacher parece ter conseguido se desprender do trabalho e deixar que ele adquira existência autônoma, enquanto arte. Não se trata mais, ao que tudo indica, de revelação de um EU em êxtase, em transe ou em dor, de tal forma que esse EU possua ou absorva autoritariamente os desígnios que seriam exclusivos da Forma, ao menos enquanto se deseja objeto de arte. A simbologia está ali, sem dúvida, na instalação, mas o caminho é justo o inverso: é o ambiente tratado plasticamente, a maneira de encaminhar ou tensionar o espaço pelos materiais e pela luz que levam às “outras” leituras, possíveis ou não, de caráter simbólico, existencial.

 

Tomada pelo sentido do espaço, pela ação e precariedade dos elementos naquela ambiência quase abstrata onde se projetam, e não mais por seus fantasmas interiores, Nelly apresenta aqui o melhor momento de seu trabalho, merecendo uma atenção mais aguda pelo que vier daqui por diante. Sem deixar de permanecer na berlinda, ela agora coloca a subjetividade no nível da consciência, da coisa dominada e articulada em um campo de fato plástico e não somente catártico ou escatológico. Os aspectos psíquicos ou mágicos do trabalho perdem aqui os últimos vestígios do Surrealismo inicial para se lançarem em outra aventura, mais radical e bastante próxima da coisa instintiva e perecível da arte povera. (CANONGIA, 1988)

 

1984

2000

Artista Jorge Guinle: Nelly Gutmacher: A Equação Feminista

As onze caixas de Nelly Gutmacher partem de duas tradições distintas: a do ex-voto de fundo religioso (a mão e o braço da artista em cerâmica visualmente nos fazem lembrar ex-votos) e a caixa-objeto modernista (como do americano Joseph Cornell) pela racionalização poética do espaço.

 

Os objetos (cristais, rendas, em algumas caixas o espelho veneziano) que compõem estas caixas são imbuídos de uma conotação romântica e teatral fin de siècle, enquanto que a mão e o braço da artista que acompanham dez das onze caixas, carimbadas pela carteira de identidade da escultora, remetem a um passado arqueológico e atemporal, de tão remoto.

 

O preto da caixa emoldura o tempo e significa a parada brusca do tempo (como no fotograma de um filme), a morte ou um evento dramático. O reflexo dos espelhos nos dois lados, no fundo, no teto, e no chão da caixa, mescla o real externo ao interno dramático, recoberto de objetos.

 

O mundo dessas vítimas heroínas cativas é retratado de uma maneira opulenta e opressiva ao mesmo tempo.

 

Vistas de longe, num primeiro tempo, a composição formada pelos poucos objetos é equacionada à pintura pelo uso rigoroso da cor (pela oposição de duas ou três cores no máximo) e pelo dinamismo das formas dos objetos que dialogam entre si. O espaço tridimensional, o espelho funcionando como metáfora do tempo, é reduzido à bidimensionalidade da pintura. E essa opulência visual formada somente pela cor e os atributos da composição atrai o olho do espectador em primeiro lugar, pois o objeto irradia a sua qualidade “abstrata” e formal. Metaforicamente, essa opulência visual poderia corresponder à fachada suntuosa das mulheres-heroínas retratadas.

Vistas de perto, num segundo tempo, o aspecto fetichista da caixa, o clima um tanto opressor, claustrofóbico do espaço interno da caixa aliado à morte, a Thanatos, contrasta com a sexualidade latente, triunfante de Eros, dos objetos que compreendem a caixa. A caixa promete tanto um mundo como o outro, onde a mulher sairá como vítima ou heroína.

 

Posteriormente, existe então, um movimento pendular entre a beleza eterna, distante do objeto em repouso, e o sentido íntimo e último em movimento do seu conteúdo.  A discrepância entre o “todo” pictórico da caixa, do seu corpo, e a fragmentação interna podem brotar da inquietude erótica, mas encontram um ponto de convergência na presença do próprio braço e a mão da artista, testemunha que se transplanta desse modo no âmbito da ação. A mão aberta da artista, os dedos separados, indica tanto um desejo de repouso absoluto, de submissão, de irradiação erótica, quanto um desejo de fuga, e serve de elo entre os dois subconscientes: o da artista e os das retratadas: o da artista e o de sua presa. O próprio colorido da cerâmica da mão e do braço comentam sobre a posição irônica da artista e da mulher através da artista, criadora, mas ao mesmo tempo vítima de rígidos arquétipos culturais. Se a incisão da carteira de identidade, dificilmente percebida pelo olho do espectador, mas presente, remete, junto ao título da série de caixas – “O Gueto” -,  a perseguições especificamente racistas, o título, afixado aos nomes das mulheres reveste-se como crítico da condição feminina, pois essa vontade de estetizar, de fantasiar o corpo “oferecido” à condição feminina, acaba por emoldurá-la num tipo de comportamento social, refratário a mudanças. E os atributos dos objetos fetichizados que comentam o seu charme em público viram no foro íntimo o seu inferno particular associados a situações amorosas claudicantes ou infernalmente claustrofóbicas. O fetiche objeto, erótico para os outros, vira o seu instrumento de tortura.

 

Essas belas damas cativas de seus clichês (“Julieta dos Espíritos”, a “Replicante”, a “Marquesa de Santos”, a “Carmem”, a “Bela da Tarde”, a “Mulher de Orfeu”, a “Circe”, a “Alessandra”, a “Maria Antonieta”, a “Iansã”, a “Phenix”, todas representando épocas e mitos diferentes, mas todas envoltas num clima fin de siècle) são singularizadas, uma por uma, por relações de cores diferentes se bem que cada qual se destaca individualmente do conjunto. A predominância de uma cor em cada caixa, forma uma escala de cores indo do escuro (sépia) ao claro (amarelo canário e branco) passando pelo rosa carne e o violeta ametista e ajudam a camuflar os objetos vistos de longe. A preocupação em mudar o posicionamento, em cada caixa, das mãos da artista, transformada por um instante em próprio personagem criado, cria ângulos cinematograficamente diferentes, tanto do ponto de vista frontal, em close, a altura de certas partes do corpo, quanto ângulos filmados de baixo para cima e vice-versa. Esse vai e vem especial contínuo e barroco não interfere na visualidade coletiva das caixas que a frontalidade criada pelo cor parece negar, mas desperta no espectador, ao inspecionar caixa por caixa, uma variedade de sensações espaciais desorientadoras.

 

Com exceção da “Mulher de Orfeu” e de “Carmem”, que se destacam das outras caixas pela falta de objetos (na “Mulher de Orfeu”) e na falta de mãos (em “Carmem”) as mãos parecem antecipar gestos humanos num desafio metafísico, pois nenhuma segura o objeto.  À espreita do espectador, mais do que uma glorificação indevida de um certo clichê pré-fabricado sobre a mulher, os objetos, por sua vez, querem captar como iscas o real. Cabe ao próprio espectador, refletido no espelho, prolongar ou não, os fetiches da caixa-espetáculo, tornando-se, no momento de sua absorção irrefletida no espelho, o fetiche real e verdadeiro da caixa.

 

A proposta sociológica refletida nessas caixas recarrega a área desses objetos de uma maneira irônica, mordaz, introduz o kitsch, reduz o intuito ritualístico à primeira vista determinante desses objetos. A fina demarcação entre o intimismo das situações criadas com minúcia e rigor e a percepção sociológica fazem os objetos oscilarem entre objetos de contemplação, de prazer e objetos de denúncia, de dor. Este átimo de demarcação no tempo, entre a entrega amorosa e estética do espectador embevecido com o ritual estereotipado e a recusa amorosa e estética do mesmo, mina o território exíguo, a primeira vista essencialmente delimitado desses objetos, fazendo voar pelos ares essas vitrines do amor. (GUINLE, 1984)

 

1983

2000

Crítico de arte Frederico Moraes: Arqueologia do Desejo em Nelly Gutmacher

Bonita a exposição de Nelly Gutmacher na Galeria Aktuel. Bonita e instigante. Nelly introduziu na cerâmica brasileira, juntamente com Celeida Tostes, uma temática nova – feminina. Abriu assim uma quarta via, ao lado do formalismo de raiz japonesa (Shoko Suzuki e Megume Yuasa), da virilidade nordestina (Brennand, Minel Santos) e do fantástico (Poteiro).

Celeida e Nelly criaram mesmo uma “escola carioca” de cerâmica, que além de temática feminina (mais visceral na primeira, mais lírica na segunda) procura revalorizar o objeto banal, do cotidiano, como se viu na última exposição do “grupo” da Escola de Artes Visuais na Galeria César Aché.

 

Outro filão da dupla é uma espécie de pesquisa arqueológica, a busca de uma neo-primitividade. Este interesse tem certa lógica em sua evolução, pois a cerâmica é barro, terra, tem muitas vezes o sentido de uma escavação, é mergulho na entranha da terra – e do tempo. Celeida pesquisa os selos, espécimes arqueológicos, documentos pré-históricos. Nelly, em que pese a aparência menos radical de sua proposta, decidiu considerar seu próprio corpo como sítio arqueológico. E o resultado é que essa sua exposição faz lembrar um museu, ou melhor, uma seção de arte antiga dos grandes museus. Aliás, a exposição está muito bem montada: poucas peças e bem distribuídas.

 

Paisagem aberta, ou como diz Merleau-Ponty, vasto campo central, fundamento de toda referência simbólica, o corpo é imprevisível. Muitas vezes ele parece agir autonomamente em relação ao próprio ser, parece sentir ou “pensar” antes mesmo que o indivíduo tome consciência do que está ocorrendo com ele e que o corpo já detectou. Às vezes nos sentimos inquietos, lânguidos, tensos, sonolentos, tristes, eufóricos, mas não sabemos explicar por que, não conseguimos formular discursiva e verbalmente esses sentimentos (ou desejos) do corpo. É como se o corpo se antecipasse em nosso sentimento de mundo, na revelação das angústias e dos desejos do ser. Ele parece sentir antes de tudo o lado repressivo da sociedade, da família, da política, da cultura.

 

Ao empregar seu próprio corpo para a moldagem inicial em gesso, que depois será transformada em cerâmica, Nelly pesquisa esta linguagem do corpo, linguagem não discursiva. Ao fragmentar seu corpo, ela quer conhecê-lo. Age um pouco como o médico legista que disseca as partes do corpo para melhor conhecê-lo. Mas estas partes dissecadas, estes fragmentos, dizem respeito ao erotismo do corpo – seios, ancas, ventre, pele, tímpano, hímen. E não contente em isolar estes fragmentos, recolhe neles, ou com eles, a lingerie, o sutiã, a calcinha, que são atributos de sedução, segunda pele ou corpo. Erotizados pelo corpo, estes objetos-fetiches são arqueologicamente parte dele, portadores de significados. Mais: Nelly pesquisa, no corpo, os símbolos da repressão (ou da libertação): incrustações de chaves e de ornamentos. Sua própria assinatura, em forma de selo, no contexto de sua pesquisa tem o mesmo significado. É como se afirmasse: esta obra é minha, este corpo é meu, sou personagem e autor. Enfim, memória do corpo, este conjunto de peças de Nelly Gutmacher é também uma arqueologia do ser, (ou do  desejo, do desejo de ser), ou melhor, a artista, como observou muito bem Alair Gomes em sua apresentação, explora esta tensão entre presente e passado, entre o pulsante e o fóssil, entre o animado e o inanimado, entre a vida e a morte. Neste sentido estes fragmentos são também uma denúncia (da repressão sexual) e uma recusa (a fossilização da vida). Nenhuma morbidez nesses fragmentos, ao contrário, neles está a erotização do ato vital. (MORAIS, 1983)

 

1982

2000

Crítico de arte Alair Gomes

O elemento constitutivo mais curioso e original na obra recente de Nelly Gutmacher é a tensão entre o processo vital e rigidez, entre presente e passado – uma espécie de reflexão, portanto, sobre o tempo e seus efeitos. Por si só já muito forte, essa tensão se potencializa ainda pelo tema ao qual se aplica, ou do qual emerge: o erótico.

 

A transcrição da moldagem original em gesso – frequentemente colhida no corpo da própria artista – para a cerâmica acentua um efeito final de rigidez. E Nelly sublinha ainda esse aspecto, dando a suas peças a aparência de fragmentos arqueológicos. Seu tratamento da cerâmica faz-nos evocar com espontaneidade, entre outras coisas, os achados de escavações; conduz-nos imaginativamente do histórico ao pré-histórico e, além, ao fóssil. Já há nisto uma captação do tempo, embora em dimensão impessoal.

 

A tensão surge, entretanto, com a irrupção do elemento pessoal e presente. Cada peça exibe, simultaneamente com as indicações do passado, sinais próximos e palpitantes de vida e individualidade.  Resultam também do processo de moldagem direta e de indicações de contemporaneidade – como a estranha superposição de lingerie a áreas densamente eróticas. Resultam ainda da perícia com que Nelly domina a matéria de suas obras, fazendo com que, obediente as suas mãos, evoque, portanto, não apenas o arqueológico e o fóssil, mas também a casca vegetal ainda quase viva, a escama e – feito notável – membranas do corpo animal animado: pele, tímpano, hímen.

 

A evocação de tímpano vem reforçada por outra, congênere: a de pavilhão auditivo. Os cacos-cascas da cerâmica de Nelly Gutmacher podem ser compreendidos ainda como grandes e sensíveis orelhas – cuja função é ouvir o pulsar do erótico. (GOMES, 1982)

 

1981

2000

Crítica de arte Maria Lucia Rangel: A matéria responde à dominação

A sala com parede de pedra e que deixa filtrar, através da treliça das janelas, uma luz suave, bem ao lado da Escola de Artes Visuais, no Parque Lage, serve atualmente de ateliê a três ceramistas. Mas são os fragmentos de Nelly Gutmacher que ocupam, atualmente, a extensa mesa central do simpático cômodo. Seios, costas, barrigas, peitos, fazem lembrar peças arqueológicas em que jóias delicadas e rendas preciosas foram depois calcadas em baixo relêvo. Cerca de 30 peças repousam sobre os suportes negros numa prévia do que será a parede de fragmentos da artista no Salão Nacional de novembro.

 

Um trabalho que teve origem nas colagens feitas por Nelly até transformarem-se em esculturas, pela necessidade de um espaço tridimensional: “Mas a maneira como trabalho o barro tem muito a ver com a colagem”, diz apontando o desenho da renda fina que recobre um meio braço ou a corrente que enfeita um colo: “Comecei esta proposta pelos seios. Depois fiz a série dos tórax (Nelly deitava-se em gavetas de gesso moldando o próprio corpo) até chegar aos carinhos: corpo com corpo, corpo com mão”. A filosofia do seu trabalho não é a cerâmica pela cerâmica, mas a pesquisa do material (“é dominando a matéria que ela te responde”).

 

Nelly lembra que, geralmente, a cerâmica é utilizada para material nobre ou utilitário: “E o barro é Brasil. O nosso trabalho é a pesquisa do homem, da terra, das raízes. Bastante visceral também, pois o barro é coisa primitiva, arcaica”. O objetivo é colocar a cerâmica de baixa-temperatura (a mesma utilizada pelos artistas nordestinos) no mercado. Nelly não fugiu, no entanto, de uma série de objetos utilitários, mas sempre deixando marcada sua linha artística: cache-pots (barriga), moringas (seio), canecas (seio onde se mama) e empadas com bicos de seios (potes de geléias). Terminando o curso de licenciatura de Arte no próximo mês, Nelly dá aulas de colagem na EAV e pretende, em breve, fazer uma individual com seus fragmentos.

 

1972

2000

Carta do crítico de arte Walmir Ayala - Bienal de Paris

Rio de janeiro, 23 de outubro de 1972.

 

Prezada artista Nelly Gutmacher

 

Eu e o crítico Antonio Bento, fomos designados representantes da Bienal de Paris, no Brasil, com a incumbência de fornecer uma lista de artistas brasileiros, de menos de 35 (trinta e cinco) anos, para a representação brasileira, à 8ª edição da dita bienal internacional, a inaugurar-se em maio de 1973. Temos o prazer de informar que incluímos o seu nome na lista de artistas nossos, entre os quais uma comissão especial da Bienal de Paris escolherá a representação definitiva. Caso aceite nossa indicação, pedimos que nos dê uma resposta urgente, e nos envie, até o dia 10 (dez) de novembro, um dossier, a partir do qual a comissão francesa selecionará os nomes dos artistas convidados.

 

O dossier de cada artista deve constar de:

  • Dados biográficos
  • Dados bibliográficos (referências em livros, dicionários de arte, relação dos principais artigos de crítica na imprensa sobre sua obra)
  • Catálogos (se tiver)
  • 5 fotografias em preto e branco
  • 5 slides a cores

 

Aguardando suas notícias, enviamos-lhe as nossas atenciosas saudações.

 

Walmir Ayala.